As Exigências do Silêncio - Anselm Grün
Trechos
Os perigos do falar:
O primeiro
perigo é a curiosidade.
A
curiosidade leva à distração. A pessoa distraída ocupa-se com todas as coisas.
É vazia e superficial. O pensamento de Deus não pode permanecer nela. Nada pode
nela amadurecer..
… Quando
alguém não é capaz de guardar nada para si e tem a necessidade de falar a
respeito de tudo, tanto do bem quanto do mal, passa a impressão de que não
possui profundidade. Não consegue viver com segredos, não consegue suportá-los.
Não é capaz de penetrar mais profundamente em um mistério. Destrói o mistério,
porque logo quer falar a respeito dele. Quando falamos, nós queremos dar nome a
tudo, fazer com que tudo se torne transmissível, e assim termos o domínio sobre
tudo.
O segundo
perigo do falar é o julgar os outros.
…Mesmo
quando queremos falar sobre os outros positivamente, nós sempre nos
surpreendemos julgando, classificando, ou então comparando-nos a eles. Com
bastante freqüência, falar sobre os outros é falar sobre si mesmo, sem que
disto se tome consciência… Mas quando falo sobre os outros eu esqueço que
estou falando sobre mim mesmo e sobre os meus problemas. E assim isso quase
nunca me leva a me conhecer melhor, antes leva-me a rejeitar a auto-observação
sincera… A um ouvinte atento, nosso falar revela qual é a nossa situação, em
que é que estamos pensando, com que nos ocupamos, o que não conseguimos superar
interiormente. Nossa linguagem trai aos outros as nossas emoções e desejos, nossos
planos, nossas motivações, nossos problemas e complexos.
O terceiro
perigo do falar é para os monges a vaidade.
Aquele que
fala muito, freqüentemente coloca-se no centro. Sempre de novo ele volta a
falar de si, põe-se debaixo da lâmpada para que os outros lhe dêem a devida
atenção.
…Quem fala
espera ser ouvido, ser levado a sério. E com bastante freqüência ele espera ser
reconhecido, ou mesmo admirado. Sem perceber, a gente torce as palavras de modo
a provocar reconhecimento.
…O quarto
perigo do falar consiste em se negligenciar a vigilância interior.
O abade Diádoco dizia: “Assim como as portas do
banho quando ficam sempre abertas rapidamente deixam o calor escoar-se de
dentro para fora, assim também quem muito fala, mesmo que fale de coisas boas,
deixa sua lembrança fugir pelo portão da voz”
…No falar eu
sempre de novo me afasto de mim mesmo e do meu centro e passo por cima das
barreiras interiores que ergui para criar ordem nas minhas idéias e
sentimentos.
… A
experiência de que em todo o falar nós sempre de novo pecamos não deve
deixar-nos oprimidos. Não devemos imaginar que estejamos sempre com a
consciência pesada. Do contrário haveríamos de nos tornar escrupulosos. Antes
devemos sempre unir a experiência de nossa ambigüidade no falar com a certeza
de que Deus nos aceita assim como somos. … Então a experiência da própria fraqueza
leva-nos não a um medo escrupuloso da culpa, mas antes a um sentimento de
liberdade interior. …Eu não preciso identificar-me com minha imagem
ideal, eu posso ser quem eu sou, porque Deus me ama assim como eu sou.
Silêncio não
quer dizer apenas deixar de falar, mas significa também que eu desisto da
possibilidade de fuga e que suporto assim como eu sou. …Muitas vezes os primeiros momentos do silêncio
nos revelam nossa confusão interior, o caos de nossos pensamentos e desejos. Um
caos que nos é doloroso suportar. Defrontarmo-nos com as tensões interiores que
nos angustiam. Mas nos silêncio estas tensões não podem escoar-se. No silêncio
nós descobrimos qual é a nossa situação. Ficar em silêncio é como analisar
nossa situação. Não podemos iludir-nos, vemos o que está acontecendo dentro de
nós.
… Mas também
pode ser útil que primeiro suportemos os problemas em silêncio sem logo termos
que falar sobre eles. Os processos íntimos podem ser prejudicados.
… Com o
falar, as emoções sempre de novo são remixadas, com o silêncio elas podem
assentar-se. É como o vinho. Quando mexido, o vinho torna-se turvo, mas quando
o deixamos parado e calmo ele torna-se calmo e transparente.
… Mas o silêncio também pode ser venenoso.
Quando alguém acha que não tem necessidade dos outros, que é capaz de fazer
tudo sozinho, então o silêncio não cura mas apenas isola. … Os monges confiam à capacidade de
discernimento distinguir quando é necessário calar-se e quando seria melhor
falar. …
Primeiramente, eu fico calado, então fica mais fácil saber se vale a pena falar
ao outro, e em que tom o devo fazer. … Após o silêncio minha reação passa a ser
mais adequada. …E assim a
conversa pode produzir mais frutos tanto para mim quanto para o outro.
… Como a condenação do outro nos torna cegos para
nossos próprios erros, devemos calar-nos.
… O essencial no silêncio é deixar de julgar.
Isto se refere não apenas às palavras pronunciadas, mas igualmente ao nosso
falar interior.
Nós estamos
constantemente ocupados em comparar-nos com os outros. Para nos sairmos bem
nestas comparações nós diminuímos o outro. … Se renunciássemos a sempre classificar,
julgar, ou mesmo a logo condenar os outros, isto haveria de levar-nos à
tranqüilidade interior.
… O silêncio no olhar os outros torna possível um conhecimento mais
claro de nós mesmos, permite-nos entender o mecanismo da projeção com que
transferimos nossos próprios erros para os outros, com isto tornando-nos
incapazes de descobri-los em nós.
O pecado dos
outros é uma ocasião para refletirmos sobre os nossos próprios pecados.
Renunciando a condenar e observando o silêncio, torno-me capaz de me reconhecer
como pecador. Assim aconselha um patriarca: “Quando vires alguém pecar, reza ao
Senhor e diz: Perdoa-me, porque eu pequei.”
Basta nos
observarmos um pouco quando não estivermos ocupados, quando nossa atenção não
estiver presa ao trabalho, a leitura ou a outra atividade qualquer. Em que é
que pensamos nesta ocasião?… os monges recorriam a estes pensamentos para saber
se não estavam presos a um dos oito vícios: gula, luxuria, cobiça, tristeza,
ira, inércia (acídia), vaidade ou orgulho.
… Por isso faz parte da prática do silêncio a
luta contra os vícios, a luta contra as atitudes falhas interiores, contra as
necessidades e desejos exagerados, contra a confusão das emoções não dominadas
e contra a mania de sempre se colocar no centro. O silêncio é um recurso na
luta contra as atitudes falhas, não é uma renúncia passiva às palavras, mas sim
um ataque ativo contra emoções e agressões que sentimos em nós.
… Só quando o silêncio leva também a um silêncio
interior é que ele é proveitoso. Do contrário, pode facilmente resumir-se a uma
fachada externa, ao silêncio do orgulhoso que se acha melhor do que dos outros,
ou o silêncio do ofendido que remói calado a ofensa que sofreu. No silêncio,
tal como os monges o entendem, trata-se sempre de uma luta interior, de um
ocupar-se honestamente com suas próprias falhas.
Para
Cassiano, esta condição do silêncio puro identifica-se com a pureza do coração.
O pressuposto para isso é a humildade, em que não queremos alcançar coisa
alguma, nem estados de recolhimento nem calma absoluta, mas em que nos
abandonamos inteiramente a Deus. A humildade é uma reação à experiência de Deus
e da própria fraqueza e impotência perante Deus. Em última análise, é um
presente, que o homem não é capaz de conseguir com suas próprias forças. É
assim também a calma e tranqüilidade, quando se calam todas as minhas falhas
interiores e desejos desmedidos, todas as minhas emoções e agressões e onde eu
mesmo fico mudo, só pode ser dada por Deus. Posso exercitar-me nela, lutando e
combatendo em silêncio contra os meus vícios. Mas ela é sempre apenas uma meta,
que nós procuramos alcançar mas que só vez por outra podemos experimentar como
presente de Deus.
… Não é
preciso reprimir os desejos, eles devem ser manifestados com tranqüilidade, mas
sempre desapegadamente. Eu posso mentir e desejar alguma coisa, mas também não
posso insistir, e sim estar pronto a desapegar-me também do desejo. … Em São
Bento, humildade e respeito estão intimamente relacionados, e quase sempre ele
menciona estes dois conceitos quando se ocupa com a maneira de falar a uma
pessoa. No respeito eu deixo o outro ser como ele é. Não pretendo modificá-lo
com minhas palavras, não desejo convencê-lo com violência nem vencê-lo com meus argumentos, mas
aceito, respeito e preservo o sentido para o seu mistério. Isto vale também
para a crítica que eu deva fazer. Também ela deve ser apresentada com
humildade.
… Para ele,
nosso convívio com o outro não é uma questão entre duas pessoas humanas. No
outro, Cristo nos vem ao encontro. E deste modo só no temor de Deus nós podemos
reconhecer o outro como aquele que ele é.
… Quando alguém fala com fé na presença de Deus,
então o falar não interrompe o silêncio mas antes brota dele, não destrói o
silêncio mas o divide com o outro.
… O silêncio
como agir ativo não consiste em que deixemos de falar e de pensar, mas sim em
que sempre de novo nos desapeguemos de nossos próprios pensamentos e do nosso
falar. Se alguém é capaz de observar o silêncio, isto não se mostra pela
quantidade de suas palavras, mas sim por sua capacidade de desapegar-se. … Quando percebo que o que eu falei não tem
sentido, e quando agradeço a Deus por ter cometido uma gafe em meus discursos,
então na verdade eu me desapego de mim. Então eu não fico preso à edificante
imagem que os outros deveriam fazer de mim, mas agradeço a Deus com as palavras
do salmo: “Foi bom para mim ser humilhado, para aprender tuas prescrições”(salmo
119,71). Nesse caso, eu não fico a imaginar como poderia ter falado melhor e
causar uma impressão mais favorável, mas desapego-me de mim e de minhas imagens
ideais para entregar-me inteiramente a Deus. No silêncio, é deste desapego que
se trata em última análise.
Quando no
silêncio surgem dentro de mim idéias e sentimentos de toda espécie, eu posso
ocupar-me com elas, lutar contra elas por tanto tempo até que cheguem ao
repouso. Este é um método (do desapego). O outro consiste em não considerar as
idéias e sentimentos como sendo tão importantes, e simplesmente deixá-las
passar. … As idéias vão e vêm, elas não tomam posse de mim. Não tenho medo
delas, não me considero pressionado a livrar-me delas, mas convivo com elas
tranquilamente, deixo-as ir e vir, até que venham cada vez menos, até que aos
poucos eu fique livre delas. …Preciso primeiro aceitá-las: este é um problema
meu, estas idéias são uma parte de mim, elas mostram quem eu sou. E posso viver
com elas, mesmo tendo que arrastá-las por toda a vida. … Quando eu tenho confiança que Deus me aceita
com todos os pensamentos que me torturam e me oprimem, então eu fico livre
desta pressão, e então em última análise estou deixando passar estes
pensamentos.
… Mas idéias e emoções podem provocar tensões
dentro de nós. Elas nos mantém ocupados. Ficamos fixados, dominados sempre
pelas mesmas idéias e sentimentos. Enquanto as idéias nos mantém presos nesta
tensão, nós somos incapazes de conviver produtivamente com elas. E assim temos
que tentar primeiramente deixar passar a tensão que está dentro de nós.
… Mas este
deixar passar só tem sentido quando com a tensão corporal deixamos passar
também a tensão interior.
O segundo
método começa com as causas das tensões. Ele pergunta onde se encontram os meus
desejos e exigências exageradas, onde é que minhas necessidades deixam-me em
estado de tensão, onde pelas preocupações estou me deixando levar a uma tensão
desagradável.
… Eu não posso desapegar-me com os dentes cerrados
mas somente quando largo alguma coisa. Não posso cerrar os dentes antes tenho
que abrir as mãos. Não posso não querer resolver o problema, não querer
arrancar um pedaço de mim, mas tenho que desfazer-me das preocupações e
exigências excessivas, deixar que me sejam tiradas. Eu me torno mais pobre
quando me desapego. Tenho que desapegar-me, que entregar um pedaço de mim
mesmo.
… Temos medo de nossas fraquezas e procuramos
garantir-nos contra elas por um sistema de prescrições, que observamos à risca.
Ou construirmos um edifício de elevados ideais, por meio do qual pretendemos
disfarçar a visão de nossos próprios abismos. … Uma ajuda para nos libertarmos destas tensões
é a confiança de que estou protegido em Deus, de que posso me deixar cair em
seus braços, porque os braços que esperam por mim não são braços que castigam
mas são braços que amam. Deixar-se cair nos braços de Deus tem algo a ver com o
amor. … Eu renuncio a todas as conquistas espirituais, e abandono-me a Deus
assim como eu sou, com todos os pensamentos que me angustiam. Agora Ele pode
assumir a direção da minha vida, pode agir para o meu bem, e também pode
mostrar-me o seu amor por mim.
Como se
manifesta concretamente o desapegar-se de si? … Eu me desapego de mim mesmo,
primeiramente, quando deixo passar minha curiosidade, quando não acho que em
tudo tenho que dizer alguma coisa, que tudo eu tenha que saber.
… Nós
atribuímos demasiada importância a nós mesmos, as nossas idéias e sentimentos,
a nossas preocupações e problemas, e custa-nos deixar que Deus entre em contato
íntimo conosco, que só Ele passe a ter importância.
… São Bento exige em sua regra que todos os dias
nós devemos pensar na morte. Devemos morrer interiormente a fim de deixarmos
espaço em nós para a verdadeira vida.
… Sair da pátria
significa para Cassiano renunciar a todos os bens deste mundo, libertar-se de
todas as ligações com o mundo. Quem deixa o mundo já não possui mais nada,
torna-se pobre. … Silêncio não significa esbanjar-se nos paramos da fantasia,
mas tornar-se pobre também em pensamentos, contentar-se com poucos pensamentos
para levar a pessoa ao recolhimento.
Sair da
parentela é para Cassiano sair da antiga forma de vida, dos nossos costumes e
vícios a que nos apegamos desde que nascemos e que se fundiram interiormente em
nós, de tal maneira que são como os nossos parentes. Este sair inclui também,
com a renúncia à vida passada, o renunciar aos sentimentos e os afetos do
passado. Devemos separar-nos daquilo que tomou posse de nosso coração. … O silêncio como sair da parentela significa,
portanto, deixar para trás as recordações. Não devemos atribuir tão grande
importância a nós próprios e nem ao nosso passado. Não devemos com a fantasia
fugir da presença de Deus para o próprio passado, buscando aí sentir-nos bem.
O sair da
casa paterna é interpretado por Cassiano como esquecer todas as recordações
deste mundo, como renunciar ao visível e passageiro e como voltar-se para o
invisível, o eterno e o futuro.
… De alguma
maneira nós temos que superar o mundo, transcendê-lo, emigrar dele e caminhando
deixar-nos dirigir e chamar por uma outra voz, temos que estar mortos para o
mundo a fim de vivermos de Deus e para Deus. Esta atitude haveria de levar-nos
à liberdade e à conformação interior, não a odiarmos ou desprezarmos o mundo,
mas sim a uma amor tranqüilo para com todas as coisas e a fixar-nos em Deus em
meio a nossas tarefas no mundo.
O silêncio
como o desapegar-se, como o morrer e emigrar deste mundo, torna-nos
interiormente livres. …Se nos
ocupássemos com as coisas e com as pessoas a partir desta liberdade, nós não
haveríamos de viver constantemente sob tensão. Poderímos trabalhar com mais
objetividade, porque não haveríamos constantemente de misturar nossas próprias
necessidades e desejos com as coisas, e iríamos trabalhar mais, porque não
haveríamos de investir uma energia desnecessária em coisas secundárias, como
reconhecimento e louvor.
… Quem no
seu agir e falar se desapegar de si mesmo, este experimenta dentro de si uma
liberdade interior e consegue abrir-se para Deus e deixar-se levar para o
serviço de Deus.
… O objetivo
do silêncio é tornar-nos mais abertos para Deus, de modo que Deus possa encher
nossas realizações, nosso pensar e nosso agir. O silêncio deve tornar-nos
transparentes para o Espírito de Deus, de modo que Deus possa assumir a direção
em nós. Não somos nós com nossa estreiteza e nosso egoísmo, que determinamos a
nossa vida, mas sim o próprio Espírito de Deus, ao qual no silêncio nós nos
entregamos e em quem depositamos nossa confiança.
… O silêncio
é uma atitude interior em que eu me abro para a realidade do Deus que me
envolve. Portanto ela é mais do que o não-falar.
O silêncio
está a serviço do escutar a palavra de Deus e do orar.
Não posso me
dar ao luxo do silêncio quando nele quero desfrutar de mim mesmo, quando apenas
desejo o meu descanso. Aos muitos que esperam por uma palavra, eu só posso
negá-la quando realmente estou ocupado com o meu silêncio, quando o silêncio
não é um passivo não-fazer-nada mas sim um ativo escutar, um dirigir ao
deserto, ao espaço de Deus, quando procuro escutar o que Deus quer me dizer no
silêncio, quando me envolvo na aventura que me aguarda num honesto silêncio
diante de Deus.
… Quando nos
desligamos de todas as nossas imagens, e mergulhamos no fundamento mais íntimo
de nós mesmos livres de toda e qualquer imagem, então somos um com Deus.
Em cada um
de nós existe um lugarzinho onde o silêncio é completo, um lugar livre do ruído
doas pensamentos, livre das preocupações e desejo. É um lugar em que nós mesmos
nos encontramos inteiramente em nós. … Não temos necessidade de criá-lo,ele já
existe, apenas está obstruído por nossos pensamentos e preocupações. Quando
desobstruímos em nós este lugar do silêncio, poderemos encontrar Deus assim
como Ele é.